Vício do vício.
Há alguns anos sinto-me incomodado com uma
parte de meu corpo que tendenciosamente vem transfigurando meu manequim - até
então: calças 46, camisas cinco, para um indivíduo de 1,90 isso significa ser
chamado vez ou outra de magrão. De três anos para cá esse termo rareou aos meus
ouvidos, mas tudo bem... Já não me sinto tanto esse tal magrão.
Passei a então a frequentar uma pista de Cooper próxima de casa, tem cerca de 2 Km
de extensão. No primeiro dia, se não fosse agnóstico ou epicurista (ainda não
sei...) juraria ter ouvido uma voz avisar que aquela pista era infinita e se
persistisse teria a sensação de conhecer o érebo, mas era só uma mensagem que,
certamente, minhas pernas débeis mandara ao cérebro. Não podia parar. Era só o começo.
Tinha um propósito: diminuir a pança que para mim já era em equivalência a de
um mamute.
Persisti, afinal não devem existir homens
satisfeitos com tal protuberância abdominal nem mulheres aptas a admirá-los
assim.
Apesar de ser algo comum, numa sociedade
sedentária, os vícios esdrúxulos como dar-se à mesa de bar para se deliciar com
muita cevada e conversas sesquipedais ou almoçar um sanduíche naquela rede famosa
de fast food para se sentir igual ao resto de
seu grupo amigos. Nada mais "é" que um ritual boçal de aceitação, ou
seja, nos aceitamos a partir do momento que temos gostos parecidos e ideias
concordes, em síntese: vivemos em dezenas de guetos numa sociedade mecanicista.
Até ai fazer o quê?
Quem pode resistir a um bom prato e ao
poder da mídia? Com seus fantoches substituem o mito antigo
"introduz-se na cabeça que pensa menos" os seus valores
consumistas e garantem a permanência de uma casta na vanguarda social; qual nos
trata como boçais e usa de artifícios diversos para vender seus produtos, pois
a economia precisa girar... Ledo engano!
Estava começando a gostar das corridas
matinais mesmo sendo apenas nos finais de semana. Via o mundo, isto é, a representação
do mundo estava ali: Aquele senhor bigodudo e sambudo não me deixou
dúvidas: devia ser um exímio frequentador de botecos, um cervejeiro. Aquela
senhora quase obesa - estou certo - deve ser confeiteira de bolos e por
fazê-los tão bem consumiu parte do que produziu sem culpa e agora percebe que
exagerou. A patricinha esbelta, roupa colada, compleição magnífica, um rabo de
cavalo preso ao boné e um óculos escuro; não falo de seu top, só estuda e
aguarda um bom casamento, afinal rico só se apaixona por rico. Isso só me faz
crer que amor nada mais é que uma convenção social, mas essa estória é para
outra página, voltando a patricinha: no conjunto tenho de dizer: Uma graça!
Todos valentes num mundo que agora querem negar... Um sujeito que, juro, não
identifiquei (se travesti ou lésbica) também luta por sua boa forma.
A pista de Cooper é um espaço mais que democrático -
nada se fala nada se ouve nada se produz em comum, mas ainda sim existe uma
confraternização silenciosa. Tosca, mas existe. Apenas olhares se cruzam.
Alguns desconfiados, outros soberbos ou meneados e tímidos.
Certo dia cruzei um destes olhares. Não
era soberbo, só desconfiado, mas um tanto penetrante quase invasivo. Passou na
velocidade da minha constância em 5 metros, creio que 2,5 SM. Ofegava como um
moribundo, contudo aquele olhar, de maneira intrigante, me fez deixar de lado
meu invólucro de atleta de final de semana e esbocei um verso ou uma poesia,
não sei bem o que é isso, de qualquer forma a chamei de ciclo vicioso, pois não
queria para de olhar.
Sol. Lua. Vênus. Você.
Brilho que incandesce meu ser.
Isso é muito forte, não nos dissemos
nenhuma palavra! Pensei: O desejo é um caos e esquecer-se disso é render-se a
algo que se pareça com paixão ou níveis diferentes de desejos. Mas aquele corpo
já me fizera ir para a pista sem lembrar que estava ali para desfazer algo
indesejável.
Repensei!
Ora! Passamos a vida fazendo para desfazer
logo depois... Casamos prontos para separar... (e tem de ser assim, ao menos
essa parte) separamos prontos para casar de novo, comemos demais - logo vamos
às pistas para entrar em forma, o que conquistamos ano passado já não tem tanta
graça hoje.
Sempre pensei assim, vivemos um ciclo
constante, quase uma paranoia social em busca de realizações e poucas
verdades terão valor real em nossas vidas, entretanto aquela cintura fina sobre
ancas levemente curvadas dera-me novo azo poético; ou patético? Não sei... Num
embalo vicejante pensei:
Insígnia da própria beldade, olhos
que singelamente rutilam,
Seu turbante atira-me genuflexo diante de
ti.
Não lobrigá-la é insatisfação certeira,
Vê-la é desejo implexo, contumaz,
Vejo-me flamipotente interpretando-a numa
erupção benfazeja.
Passado o assomo poético (quero dizer:
patético) não fora difícil perceber que nossos reflexos, desejos, paixões,
desapego, realizações, buscas etc., obedecem estritamente a que o grupo qual
façamos parte valoriza, então tendemos a nos imitar em algum momento em todos
os aspectos.
Aquele senhor barrigudo (imagino) fazia
parte de um grupo de boêmios, a confeiteira uma dona de casa desatenta a
modismos, o sujeito não identificado dado a vícios de seu oficio, por natureza
ou contra ela. A patricinha de belas ancas envolvida e informada sabe que é
preciso cuidar bem do corpo em qualquer idade, além de saúde cuidar das formas
corporais faz bem ao ego e pode render uma série de vantagens; nada vou
comentar sobre o homem grisalho que a aguardava no final da pista com seu carro
de luxo e pronto para receber um beijo grego. Sobre os belos olhos que por
instante me levaram para um templo que desconheço nada imagino tudo é mistério
quando se deseja. Tudo é dúvida...
Em que grupo estou? Arredio a vícios
sociais que visam vantagens financeiras apenas; Insulado, observador do ocaso
que tal modelo de sociedade propõe ao planeta. Fugindo de entrelaçamentos que manifestem
qualquer tipo de dependência. Não sei se existe esse grupo, talvez não seja
humano ou crônico demais.
Aproximando-me do fim dos meus históricos
20 minutos de corrida a questão do errar para refazer voltou à mente:
Erramos para ter o que fazer depois,
engordar para emagrecer? Construímos para lucrar muito! Para libertamos da
opressão oprimindo? Este paradoxo nega nossa inteligência humanista e nos
coloca como um animal qualquer: um animal competidor. "Por que não
cuidamos para não ter tanto a que corrigir?”
A resposta me veio tão rápida quanto a
questão não como resposta, mas em novas dúvidas:
"Que graça teria a vida sem o prazer
riso após a verificação do erro e a prontidão do aumento deste riso na
correção? Que sentido tem uma vida cercada de metodologias para tudo?"
É isso! A vida humana deve ter sido alguma
experiência desastrosa de alguma entidade extraterrestre muito atrapalhado, um
bufão, quem sabe? Tudo bem! Ainda assim é bom viver...
Bom... Mas vou refletir sobre isso na
próxima volta.
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